Grandes Concertos | Deolinda

27 Agosto 2015 M18

"Mundo Pequenino.
Será possível? Da última vez que trouxeram novidades – eles e não ela, a  personalidade criada para os resguardar – cantavam a desdita de uma vida amachucada pela insensibilidade e pela burocracia, pelo vocabulário dos pragmáticos e pela conta dos “merceeiros”. Em momento agitado, Portugal precisava daquele hino, ‘Parva Que Sou’, tão oportuno (lembram-se de quantas vezes o cantaram, fossem professores ou alunos ou professores e alunos?) quanto honesto e desprendido: se tivessem querido cavalgar a onda que lhes foi montada à porta de casa, os Deolinda seriam hoje figuras de comício e não músicos de corpo inteiro, também capazes de desafiar consciências, uma das missões que se atribuem nesta hora de regresso.
Também aqui se regressa à dúvida instalada desde o primeiro momento: será possível que, no reatamento de um diálogo que se tem intensificado desde ‘Canção ao Lado’ (2008), eles escolham uma canção que apela à dança? “Arreda a mesa e vem daí/Já somos nós quem manda aqui/Vamos lá pôr isto a cantar/E quem não canta e está praí/A fazer tempo pra sair/Que nos dê espaço para dançar”. Mas, afinal?! Chama-se ‘Algo Novo’ e, acreditem, podia resumir todo este ‘Mundo Pequenino’, se este não deixasse pistas e sinais para tantos rumos distintos. De qualquer forma, é optimista. Ou talvez não: é apenas bem disposto e orelhudo, como tantas vezes antes, como nunca de forma tão mascarada, elegante e inteligente. Querem ver? “Quem aqui passa/vê que a festa continua/e cada um de nós tem algo a decidir/Eu, contigo, hei-de pôr isto na rua/que eu também sinto/que o melhor está para vir”. Temos conversa. E temos festa.
Julgo não haver melhor forma de surpreender do que esta: reafirmar. Para quem quer fugir ao “baile mandado”, nada como dançar de livre vontade. E quem esteja à espera que ‘Mundo Pequenino’ valha um acto de contrição aos Deolinda, pode tirar daí as suas apostas. Nem contrição nem contracção: mantendo o perfil, aquilo a que alguns, noutros quadrantes, chamariam “a pureza ideológica”, os traços de carácter, uma certa instabilidade comportamental (e este disco é uma montanha russa, um sonho americano, uma mensagem africana, uma fúria castelhana, uma serenata italiana, uma paixão francesa, com a vantagem de ser mais e mais português) e um prazer desmesurado e descarado pelas canções que vão ficando registadas no consciente colectivo – se é que existe algo assim… –, os Deolinda crescem, crescem muito, crescem cuidadosa mas espontaneamente em nome da aventura diária de serem músicos e de precisarem dessa abertura à expansão, tanto mais que nos provam, passo a passo, que não perdem de vista o ponto de partida. Crescem tanto que poderiam até defender que o ‘Mundo Pequenino’ é aquele que lhes fica abaixo e que, se fossem gente assim, poderiam manipular e perverter sem que déssemos por isso, Felizmente, é gente séria a que aqui anda, apesar de todas as ironias e maroscas que se espalham pelo álbum que, peço-lhes que acreditem mais uma vez, nos vai valer como um manual de sobrevivência feliz em tempos difíceis. E levar-nos-ão a paragens mais estimulantes ainda do que tinham – e tínhamos – alcançado com ‘Dois Selos e Um Carimbo’ (2010).
Se estivéssemos a raciocinar noutros parâmetros, dir-se-ia que os Deolinda seguem as mais modernas e ousadas teorias económicas, e não apenas as cartilhas que por aí vão aparecendo traduzidas: em tempo de crise, investem. Em época de aperto, diversificam.
Em momento de aflição, como já vimos, cantam a defesa da felicidade. Ao ponto de, sem venderem a alma aos diabos nem aceitarem miscigenar os seus códigos de linguagem, vão à procura de um parceiro estrangeiro que os enriqueça sem lhes tolher as decisões de fundo, que converse sem impor, que sugira sem ordenar. Aposto, singelo contra dobrado, que Jerry Boys – o homem que, aos botões de uma mesa de som e muito mais, ajudou Ry Cooder a boicotar o boicote a Cuba, permitindo a esplendorosa revelação de Compay Segundo, Omara Portuondo, Eliades Ochoa, Ruben Gonzalez e todos os outros jovens anciãos que arquitectaram o Buena Vista Social Club, música de dolências e esplendores que não merecia estar fechada e muito menos esquecida – foi sobretudo um leal conselheiro, um génio da lâmpada ao dispor dos desejos dos Deolinda. E o que queriam eles? Presume-se que esta navegação de desafio, que lhes faz transbordar mais talento e mais instinto e mais saberes em cada cantiga, teimosa, convicta, vibrante, para a qual precisavam de uma mão sábia e disponível. Um dos maiores méritos deste disco é verdadeiramente paradoxal: as limitações do naipe instrumental que associamos ao grupo (violas acústicas, contrabaixo) desaparecem ao primeiro assalto e, ao longo da dúzia de escalas, mais ninguém se lembra de como “isto” era. Onde é que está o paradoxo? Do primeiro ao último momento, não há uma ocasião, um espaço, um compasso, uma inflexão que não se associe de imediato a
Deolinda. É obra.
Há, também, como se já não bastasse o grande salto em frente, a “diversificação do produto” (agora é que eles não perdoam), uma outra emancipação – se a proximidade do Fado nunca foi um fardo, nem ela escapa a esta “limpeza ética” que o terceiro disco dos Deolinda representa a um nível de excepção. Eles não se repetem, mesmo se insistem. Eles não se esquecem, mesmo quando inovam. Eles não brincam, mesmo que gozem. Eles não se perdem, mesmo que pareçam tomar outros caminhos. Talvez por tudo isto, consigam juntar figuras de estilo – os protagonistas de ‘Semáforo da João Vinte e Um’, que só mesmo por acidente se podem cruzar num mesmo paralelo, e de ‘Pois Foi’, de que todos conhecemos ao menos uma variante – a deliciosos exercícios que, um dia destes, algum professor, lúcido e atento, utilizará como alavanca sumarenta para explicar o que parece árido e nulo – caso máximo de ‘Concordância’. A ironia urbana é uma arma de arremesso dos Deolinda desde que ainda gatinhavam. O que torna mais fascinante a capacidade de renovação de reportório, tão sensível na indisfarçável sensualidade de ‘Doidos’, no enredo camuflado de ‘Não Ouviste Nada’ (em que se salienta a colaboração com António Zambujo), com os narradores a abandonarem a sua proverbial neutralidade e a gozarem as delícias de poderem provar e provocar o “veneno” do argumento, no espantoso e tão simples retrato de ‘Há-de Passar’, espelho para tantos que nunca se atrevem a ir além da surdina, quando podiam e deviam gritar. Feitios.
Há ‘Musiquinha’, claro. Uma ironia mais triste, mais marcada, entre o libertado e o alienado. Curioso é verificar que, do ponto de vista musical, é um dos tratados que aqui se explanam sem atropelos. E há dois momentos que hão-de incendiar e comover muitos dos concertos dos Deolinda, mesmo diluídos entre propostas de outro cariz, menos catalisador e menos tocante. Um: ‘Medo de Mim’, uma construção arrepiante, exemplar, vivida em primeira instância mas decididamente transmissível, como têm que ser as canções que podemos desfraldar como bandeiras, partindo de uma história particular para um alarme geral. Genial. Dois: ‘Balanço’, talvez a mais forte das dádivas vocais da cantora Ana Bacalhau, um recado de mãe para criança em hora de silêncios funestos e de limitações pouco naturais. Vamos ouvir falar dele, e depressa. Por fim, aquilo que primeiro se ouve: ‘Seja Agora’. E outra vez estes moços a jogar com a pluralidade de significados, com as camadas de leitura, com os níveis de envolvimento.
Um recado simples ou uma declaração de fundo? Cada um escolherá o seu mergulho. Mas não passará ao lado disto: “Nós havemos ambos de encontrar/um destino qualquer/ou um banquinho bom para sentar/Vai ser tão bonito descobrir/que no futuro só/quem decide é a vontade/Tem de acontecer, porque tem de ser/e o que tem de ser tem muita força/E sei que vai ser, porque tem de ser/Se é pra acontecer, pois que seja agora”. Foi o que tinha de ser, este disco abençoado em cuja sombra nos protegemos (do esquecimento, do desalento, da fatalidade), a cuja luz deliciados nos expomos (à paixão, à força, à magia concentrada). Agora, se quiserem continuar a tratá-los como um “fenómeno” ou como uma “revelação”, por favor não fiquem por aí – os Deolinda são, na nossa capela de egos e cegos, uma vitamina e uma revolução. Façam-nos sorrir, chorar, sonhar, pensar, lutar ou apenas recomeçar tudo, façam o que fizerem, fazem-no com tanto sentimento que nos põem em sentido. Figurado, claro, que aqui as artes nunca são marciais. Último aviso que vos deixo: dentro de ‘Mundo Pequenino’, há um insuspeito e infinito universo. Onde cabemos todos, com conforto e inquietação. 
Fã? Sou, sim senhor. E, para assumir, pois que seja agora. Que esperto que eu sou…"
JOÃO GOBERN, Fevereiro de 2013

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